Semi-ficção – Convidado VIP

O Chamado

Dudu já tinha tomado seu Nescau noturno (cultivava esse hábito desde criança) e estava na frente da televisão naquele estado letárgico de quem espera o sono chegar, quando toca o telefone: “Dudu, tá acordado, véio?” Era a Catita, amiga de outros carnavais.
“Fala, Catita, tô sim, que manda?”
“Dudu, escuta, eu tô em São Paulo, fiquei presa numa reunião e não consegui voltar. Mas, se liga, tá rolando uma festa im-per-dí-vel no Balacobaco e eu lembrei de você, topa?”
Descoladíssima, a Catita sempre vinha com as boas de onde menos se esperava. Se ela dizia que a festa era imperdível, então devia ser mesmo. Esqueceu do pijama, do Nescau, do despertador que tocaria às 7hs e disse: “Topo”.
“Legal! Anota aí, o esquema é o seguinte, o seu nome vai estar na porta, mas você tem que dizer que é o Joca Lordão. Ele não vai com certeza, aí você entra com o nome dele.”
“Joca Lordão?”
“É, isso.”
“Beleza, Catita, valeu mesmo a lembrança! Depois te conto como foi.”
“Que é isso, véio, tranqüilo. Aproveita!”
Tomou banho e se arrumou em tempo recorde. Preferiu um visual despojado, mais ao estilo do Balacobaco. Tirou o carro da garagem e partiu rumo à noite inesperada.
Entrada
Chegou no local da festa e de longe viu que a amiga não tinha se enganado. Na pressa do telefonema até se esqueceu de perguntar do que ou de quem era a festa, mas pelo histórico da Catita desconfiava que fosse de alguém ligado ao meio artístico.
Deixou o carro com o manobrista e foi até a hostess, que estava cercada de gente. Seguindo as instruções da amiga, disse:
“Boa noite, Joca Lordão.”

Convidado VIP

Conferido o nome na lista, a hostess colocava uma pulserinha VIP no seu pulso quando um sujeito em pé ali do lado dirigiu-se para ele:
“Joca Lordão! Que bom que você veio, cara!”
Dudu, meio desconcertado, deu um sorriso amarelo e murmurou um “E aí?...” O sujeito ia arrastando ele pra dentro enquanto falava eufórico: “Nem acredito, você aqui! Diz a lenda que depois de João Gilberto você é o camarada que menos sai de casa, mas eu tive um pressentimento que hoje você ia aparecer! Desculpa, eu nem me apresentei, Jorginho Russomano da Planeta FM. Nem acredito! Tem uma pessoa aqui que quer muito te conhecer, vem!” Continuou andando pela casa entusiasmadíssimo com Dudu a tiracolo até chegar num grupo grande de pessoas, dentre as quais ele reconheceu uma meia dúzia de caras famosas. Naquele momento Dudu já estava arrependido de ter saído de casa e sentia o vexame iminente, desejava sair correndo, mas o falante Jorginho não dava nenhuma brecha.
Pararam na frente da nova estrela da cena rock, Beto Feroz, namorado contumaz de atrizes de novela. Jorginho exclamou: “Betão! Esse é o cara!”
Fazendo juz ao nome, Feroz lançou um olhar de desprezo para Dudu, mas mudou de expressão no segundo seguinte ao ouvir do sorridente Jorginho a apresentação: “Joca Lordão!”
“Mestre Joca!” disse Beto Feroz fazendo uma reverência no estilo oriental para um Dudu cada vez mais constrangido porque sentia que o burburinho em torno dele aumentava.
“Foi um milagre que te trouxe aqui, brother! Queria tanto armar com você aquele lance da entrevista, vai rolar mesmo? Semana que vem?” e o Dudu confuso respondia: “Vai, vai sim”.
“Mas que dia é o melhor? Segunda? Terça? Quarta eu tô em estúdio, mas se você preferir quarta eu posso dar um jeito...” Feroz tinha virado um gato manso e Dudu respondia vagamente: “Segunda... Terça...” Beto Feroz insistia: “Segunda? Terça? Que dia? Pra mim pode ser qualquer dia!”
Nisso uma morena fenomenal interrompeu o diálogo e perguntou para Dudu: “Joca Lordão?!”
Feroz, se sentindo sobrando, fechou o papo: “Joca, você é o cara da noite. Te ligo pra gente marcar o lance da entrevista. Valeu, brother!”
“Valeu...” respondeu o atônito Dudu, se virando para a morena que disse: “Eu acho que a gente se conheceu há um tempo atrás, só que... não sei, você tá diferente...” Ele teve a certeza que ia ser desmascarado ali, mas arriscou: “É, eu dei uma emagrecida...” A morena parecia confusa, no entanto estava disposta a continuar o papo cheia de simpatia:
“Olha, eu tenho até vergonha de te dizer isso, mas eu sempre admirei muito o seu trabalho! Esse pessoal que te critica, só pode ser porque não te conhece! E eu sempre defendi você porque...” e seguiu falando enquanto o Dudu respondia monossilabicamente.

Reconstruindo Joca Lordão

Os garçons passavam pra lá e pra cá com bandejas cheias de drinques incríveis e o Dudu achou que, já que estava ali, ia pelo menos aproveitar a fartura etílica. Foi se soltando e aos poucos gostando dos seus momentos como persona do show bizz, principalmente ao lado daquela morena.
O vocalista-galã de uma banda pop decadente chegou cortando a conversa:
“Joca Lordão! Há semanas eu tô tentando falar com você! Que honra te encontrar pessoalmente! Meu irmão, preciso te mandar a demo do nosso novo álbum! O Figurinha Fácil evoluiu muito musicalmente, eu tenho certeza que você vai sentir isso logo na primeira faixa...Você vai ficar amarradão!” e Dudu, meio contrariado porque a morena aproveitou a deixa e se afastou, respondeu “Claro, manda sim...” Sabia que o som da banda era um lixo e qualquer evolução era pouco provável, mas o outro continuou falando das maravilhas do novo álbum. Outras pessoas se aproximavam dele, faziam elogios, prestavam homenagens, davam tapinhas nas costas e ele retribuía sorrindo com um misto de timidez e humildade.
Dudu estava tonto e não conseguia descobrir se o tal Joca Lordão era jornalista, músico, executivo de gravadora ou magnata. Sua única certeza era de que seu alter-ego era muito poderoso. Quando foi ao banheiro, arranjou um canto escondido para ligar para a amiga:
“Quem é esse Joca Lordão, Catita?” e ela: “Por quê?”
“Porra! Você me meteu numa roubada!” Ele ouviu uma gargalhada do outro lado. No mesmo instante entrou no banheiro seu novo amigo Jorginho. Ele sussurrou: “Preciso desligar”.
Jorginho não se continha de orgulho por ter introduzido o grande homem junto a pessoas importantes: “E aí Joca? Curtindo a balada?” “Joinha” respondeu Dudu, usando uma palavra que fantasiou ser do vocabulário Lordaniano.
Saindo do banheiro, Dudu deu de cara com a morena, que o surpreendeu com um sorriso convidativo. Engataram novamente no papo e do papo para os beijos.

Dia seguinte

Dudu não conseguia lembrar como chegou em casa. O despertador tocou às 7hs, depois às 8hs, 9hs... Às 10hs teve forças de pegar o celular e ligar pro trabalho pra dizer que uma virose tinha acabado com ele.
Se lembrava vagamente de ter conversado com uma série de famosos (chegou a abraçar alguns?), de ter tirado fotos e dado uma canja cantando (teria tocado bateria também?). Mas eram apenas flashes. Virou para o lado e voltou a dormir. Sonhou que era o Mick Jagger e que estava em uma escuna na Riviera, cercado de modelos cantando “I can’t get no Satisfaction”.
Por sorte nenhum colega da repartição reconheceu Dudu, com uma morena no colo, na foto que saiu coluna social daquele dia. A legenda dizia: “Joca Lordão e Gisela Garcia em noite de agito no Balacobaco”.

Joca Lordão, o verdadeiro

Joca Lordão, nascido João Carlos da Silva, chegou no escritório por volta das 3hs da tarde. Passou direto para sua sala sem cumprimentar ninguém. Um pouco depois Viviane, sua assistente, entrou. Como de costume levava: dois maços de cigarro mentolado, um pacote de balas de tamarindo, o London Times (somente o suplemento cultural e as palavras-cruzadas), e uma taça de água com gás e uma azeitona verde dentro, porque o chefe estava tentando parar de tomar dry Martini pela “manhã”. Dispôs tudo meticulosamente sobre a mesa. Ele acendeu o primeiro cigarro. Era a senha para ela começar a passar os recados do dia.
“Bom dia, Joca. Hoje o telefone não parou de tocar! Uma loucura! O Beto Feroz ligou, disse que vocês ficaram de marcar uma entrevista para segunda ou terça e ele quer confirmar o dia e a hora e...” Joca interrompeu: “Beto Feroz? Beto Feroz? Você tá louca? Eu nunca falei com esse sujeitinho! Era só o que faltava! Não tem entrevista nem segunda, nem terça, nem nunca! É cada uma... inventar que falou comigo! É muita cara-de-pau pra tentar conseguir uma entrevista! Que vá bater lá no programa da Hebe!” Ela engoliu seco e continuou:
“O Alex Mariani..”
“Quem?!”
“O Alex Mariani, o vocalista daquela banda Figurinha Fácil disse que conversou com você ontem e ficou de mandar a demo do novo cd pra você dar sua opinião e...”
“Ô, ô, ô, escuta aqui ô Viviana”, ele gaguejava quando ficava nervoso e nunca falava certo o nome da assistente, “você fumou crack antes de eu chegar?! Quando é que você acha que eu ia dirigir a palavra a esse bostinha desse... esse... esse vocalistazinho dessa bandinha de m*, hein? Você manda esse babaca enfiar essa demo no c* dele, c*!” Ele rosnava e mastigava o cigarro como se fosse charuto.
Louca para acabar com aquilo, ela omitiu alguns outros recados imaginando que irritariam ainda mais o chefe e foi direto ao que julgou ser o único capaz de agradá-lo:
“A Gisela Garcia ligou e disse que adorou a noite, quer saber quando vocês podem se encontrar de novo.” Ele apertou os olhos, possesso:
“Ô, ô, ô, Viviana! V-v-você anda bebendo o meu Martini, c*?! Que, que, que, p* de Gisela, eu nem sei quem é essa vagabunda! V-v-vai, s-s-sai daqui!” Fez um gesto como quem espanta a pessoa com a mão e pegou mais um cigarro, enquanto o outro ainda queimava no cinzeiro.
Viviane suspirou ao voltar para a mesa. Quase sempre era assim, mas naquele dia ele estava especialmente azedo. Abriu o jornal e levou um susto ao ver uma foto, segundo a legenda, de Joca Lordão e Gisela Garcia na coluna social. O homem da foto definitivamente não era o chefe! Ficou intrigada e pensou “Esses jornalistas hoje em dia escrevem qualquer bobagem! Não apuram nada, nem se preocupam em checar os nomes das pessoas!...”
Dobrou o jornal e guardou na gaveta. Achou que não era uma boa hora para mostrar aquilo para o chefe, refletindo que o mau humor dele andava cada vez pior...

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